O
“TI” VAQUINHAS
Conheci-o
nos meus tempos de menino.
O ”Ti”
Vaquinhas, como era geralmente conhecido no meio, era um homem bom e um crente
que, lendo a Bíblia assiduamente, acreditava na segunda vinda de Jesus Cristo ainda no
seu tempo e que, assim, não iria passar pela morte, assistindo a essa manifestação
divina.
O “Ti”
Vaquinhas vivia só, pois a mulher havia-o deixado para ir fazer companhia a uma
velha tia rica que vivia na cidade e a quem ele acusava de ter destruído a sua
harmonia familiar.
No entanto,
o nosso homem, era ainda dono de duas propriedades rurais que lhe davam (apesar dos maus tempos que também se viviam na época) para o seu sustento, ainda que frugal- talvez mesmo insuficiente- dadas as suas limitações
como homem que não estava habituado a viver sozinho e que naturalmente não as
saberia ultrapassar, mormente a da alimentação, depois da situação que lhe foi
criada pela falta da mulher.
Tinha dois
filhos já casados e que viviam longe dali e descuravam um pouco a assistência
ao pai, só o visitando de tempos a tempos.
Admirava-o,
respeitava-o, ouvindo as bonitas histórias de vida que sempre tinha para nos
contar com tal realismo que a todos nós impressionava, sequiosos como
estávamos, não só pela nossa pouca idade, mas também pela escassez de meios no
interior do país, onde nem sequer um rádio havia e o jornal “O Século” vinha
com destino à Junta de Freguesia e, depois, mais tarde, à Casa do Povo.
(O meu
padrinho começou então a assinar “ O Primeiro de Janeiro”, e era um prazer para
mim, logo que comecei a ler, poder folheá-lo e deliciar-me com a página
infantil de onde eu tirava indicações para trabalhos manuais, auxiliado por
meus pais e, por vezes, pelo meu tio Manuel S. Bento
No nosso dia
a dia inventávamos brincadeiras no largo da aldeia, que sempre era melhor que
irmos aos ninhos ou à caça com a nossa fisga, para além da pesca na ribeira,
que, ainda assim, só era preocupação para os pais no receio de que algo de mal nos
sucedesse nos pegos, alguns já com alguma profundidade. Era um mal menor num
passatempo que também muito nos agradava.
Voltando ao
“Ti” Vaquinhas relembro uma série de histórias, que tendo a sua graça, nos
prendiam a atenção, sendo ele um verdadeiro mestre na arte de as contar.
Crescemos e continuámos a gostar de o ouvir, embora por vezes já conhecêssemos
essas histórias. Até os adultos, conhecendo muitas delas, paravam para o ouvir.
Naquele
tempo era assim no meu meio. Este homem, sem o saber, fazia um exemplar
trabalho na aldeia- um verdadeiro pedagogo- que estando mais disponível, era um
excelente “entreteiner”e tinha em nós todos um amigo e admirador.
Na época
invernosa, inclusive, havia homens que, ao saírem das tabernas, lhe batiam à
porta para se aquecerem à sua lareira até altas horas da madrugada, por
vezes pedindo-lhe, inclusive, para ir assar um bocado de toucinho, farinheira ou chouriço, o que ele fazia de boa vontade.
Era
uma festa e ele, na sua bondade, até agradecia, pois assim estava acompanhado. Era, afinal, bom
para todos o aconchego da lareira em alegre convívio, incluindo canções daquele
tempo e fados que alguns se atreviam a cantar. Até as mulheres da aldeia, ficavam mais
descansadas, sabendo que os maridos já não estavam na taberna.
Como recordo
com saudade esses tempos, perante estas e outras situações, onde as pequenas
coisas a que tínhamos acesso eram de um valor sobrenatural! Incluo aqui, também,
os bailaricos no salão, a vinda, por vezes, de artistas circenses e fadistas e a exibição
de filmes ao ar livre como “ O Homem do Ribatejo” com grandes artistas como
Hermínia Silva, Barreto Poeira, Virgílio Teixeira, Vasco Santana, Eunice Muñoz,
etc.. Eram
verdadeiros acontecimentos que enchiam de alegria o povo da minha Ribeira de Nisa, especialmente do meu Monte Carvalho.
Tudo era
diferente e tinha um especial encanto, especialmente para nós, os mais jovens,
vivendo longe do bulício das grandes cidades, que desconhecíamos,
verdadeiramente.
Só
quem viveu naqueles meios pode avaliar o que representavam essas autênticas
dádivas recebidas no interior, nos anos quarenta, também tempos de pobreza.
Claro que
reconheço quanto hoje a vida é diferente. Não serei nunca contra o progresso.
Limito-me a exaltar algumas das virtualidades da vida num tempo de carências
materiais- é certo- mas onde, ainda assim, havia trabalho, embora mal
remunerado.
Nos campos-
hoje quase totalmente ao abandono- tristemente- ainda se semeava, colhia e se
cuidavam os pomares, ocupando grande parte da população. Depois, o que
aconteceu?! Grandes disparates de ordem política que dia a dia foram
contribuindo para a desertificação do interior e correspondente fecho de
pequenas indústrias e abandono dos trabalhos agrícolas tão essenciais à vida do
país.
O
"Ti" Vaquinhas, já no final dos seus dias (qual profeta) bem avisava,
chamando a atenção para os perigos que segundo ele poderiam advir, se se
abandonassem os campos, esquecendo a Mãe Natureza.
Não era só
um contador de histórias, o "Ti" Vaquinhas. Curvo-me perante a sua memória.
Que descanse em paz!.
Quinta da
Piedade, 14 de dezembro de 2013
JGRBranquinho