terça-feira, 17 de dezembro de 2013

O "TI" VAQUINHAS



 

O  “TI”  VAQUINHAS
Conheci-o nos meus tempos de menino.
 O ”Ti” Vaquinhas, como era geralmente conhecido no meio, era um homem bom e um crente que, lendo a Bíblia assiduamente, acreditava na segunda vinda de Jesus Cristo ainda no seu tempo e que, assim, não iria passar pela morte, assistindo a essa manifestação divina.
O “Ti” Vaquinhas vivia só, pois a mulher havia-o deixado para ir fazer companhia a uma velha tia rica que vivia na cidade e a quem ele acusava de ter destruído a sua harmonia familiar.
No entanto, o nosso homem, era ainda dono de duas propriedades rurais que lhe davam (apesar dos maus tempos que também se viviam na época) para o seu sustento, ainda que frugal- talvez mesmo insuficiente-  dadas as suas limitações como homem que não estava habituado a viver sozinho e que naturalmente não as saberia ultrapassar, mormente a da alimentação, depois da situação que lhe foi criada pela falta da mulher.
Tinha dois filhos já casados e que viviam longe dali e descuravam um pouco a assistência ao pai, só o visitando de tempos a tempos.
 Admirava-o, respeitava-o, ouvindo as bonitas histórias de vida que sempre tinha para nos contar com tal realismo que a todos nós impressionava, sequiosos como estávamos, não só pela nossa pouca idade, mas também pela escassez de meios no interior do país, onde nem sequer um rádio havia e o jornal “O Século” vinha com destino à Junta de Freguesia e, depois, mais tarde, à Casa do Povo.
(O meu padrinho começou então a assinar “ O Primeiro de Janeiro”, e era um prazer para mim, logo que comecei a ler, poder folheá-lo e deliciar-me com a página infantil de onde eu tirava indicações para trabalhos manuais, auxiliado por meus pais e, por vezes, pelo meu tio Manuel S. Bento          
No nosso dia a dia inventávamos brincadeiras no largo da aldeia, que sempre era melhor que irmos aos ninhos ou à caça com a nossa fisga, para além da pesca na ribeira, que, ainda assim, só era preocupação para os pais no receio de que algo de mal nos sucedesse nos pegos, alguns já com alguma profundidade. Era um mal menor num passatempo que também muito nos agradava.
Voltando ao “Ti” Vaquinhas relembro uma série de histórias, que tendo a sua graça, nos prendiam a atenção, sendo ele um verdadeiro mestre na arte de as contar. Crescemos e continuámos a gostar de o ouvir, embora por vezes já conhecêssemos essas histórias. Até os adultos, conhecendo muitas delas, paravam para o ouvir.
Naquele tempo era assim no meu meio. Este homem, sem o saber, fazia um exemplar trabalho na aldeia- um verdadeiro pedagogo- que estando mais disponível, era um excelente “entreteiner”e tinha em nós todos um amigo e admirador.
Na época invernosa, inclusive, havia homens que, ao saírem das tabernas, lhe batiam à porta para se aquecerem à sua lareira até altas horas da madrugada, por vezes pedindo-lhe, inclusive, para ir assar um bocado de toucinho, farinheira ou chouriço, o que ele fazia de boa vontade. 
Era uma festa e ele, na sua bondade, até agradecia, pois assim estava acompanhado. Era, afinal, bom para todos o aconchego da lareira em alegre convívio, incluindo canções daquele tempo e fados que alguns se atreviam a cantar. Até as mulheres da aldeia, ficavam mais descansadas, sabendo que os maridos já não estavam na taberna.
Como recordo com saudade esses tempos, perante estas e outras situações, onde as pequenas coisas a que tínhamos acesso eram de um valor sobrenatural! Incluo aqui, também, os bailaricos no salão, a vinda, por vezes, de artistas circenses e fadistas e a  exibição de filmes ao ar livre como “ O Homem do Ribatejo” com grandes artistas como Hermínia Silva, Barreto Poeira, Virgílio Teixeira, Vasco Santana, Eunice Muñoz, etc..  Eram verdadeiros acontecimentos que enchiam de alegria o povo da minha Ribeira de Nisa, especialmente do meu Monte Carvalho.
Tudo era diferente e tinha um especial encanto, especialmente para nós, os mais jovens, vivendo longe do bulício das grandes cidades, que desconhecíamos, verdadeiramente.
 Só quem viveu naqueles meios pode avaliar o que representavam essas autênticas dádivas recebidas no interior, nos anos quarenta, também tempos de pobreza.
Claro que reconheço quanto hoje a vida é diferente. Não serei nunca contra o progresso. Limito-me a exaltar algumas das virtualidades da vida num tempo de carências materiais- é certo-  mas onde, ainda assim, havia trabalho, embora mal remunerado.
Nos campos- hoje quase totalmente ao abandono- tristemente- ainda se semeava, colhia e se cuidavam os pomares, ocupando grande parte da população. Depois, o que aconteceu?! Grandes disparates de ordem política que dia a dia foram contribuindo para a desertificação do interior e correspondente fecho de pequenas indústrias e abandono dos trabalhos agrícolas tão essenciais à vida do país.
O "Ti" Vaquinhas, já no final dos seus dias (qual profeta) bem avisava, chamando a atenção para os perigos que segundo ele poderiam advir, se se abandonassem os campos, esquecendo a Mãe Natureza.
Não era só um contador de histórias, o "Ti" Vaquinhas. Curvo-me perante a sua memória.
Que descanse em paz!.
Quinta da Piedade, 14 de dezembro de 2013
JGRBranquinho


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