domingo, 28 de dezembro de 2014

A DOR DO POETA JOSÉ DURO



                                  Doente


Quando o meu corpo, já sem vida, inerme
Lançado for à podridão do verme,
- Se ele é verme também, e o verme é pó-
-Porque de todo o meu olhar eu cerre,
Pede, pede ao coveiro que me enterre
Na cova mais humilde, ó minha avó!



Escrevo e choro; dói-me a alma; tenho febre
Não sei a quantos graus- calor insuportável;
- Moderno Lázaro- ó que vida miserável
Eu vivo aqui, doente e só, no meu casebre.

Agora compreendo a dor de não ter lar
E a dor de viver só- desventura tamanha!
É ser mais triste do que os cardos da montanha,
As urzes do caminho e as noites sem luar…



 Meus tempos de criança! E fui fadado assim!
 A minha mocidade é como que um deserto;
 Não creio que haja alguém que possa amar-me, enfim
 E Deus, se Deus existe, odeia-me decerto…

              Confesso que estou pronto, e, se me vejo ao espelho,
              Descerra-se-me a boca em risos de desdém…
              Imagem do que fui, - eu nunca fui ninguém-,
              E , ó má fatalidade, encontro-me hoje um velho.

             Cavou-me a Dor na face as rugas do desgosto,
             Meus olhos de chorar vão-se tornando cegos,
             E quando os chamo, a ver aquilo que dá gosto,
             Escondem-se na treva assim como morcegos.

           Dilui-se-me o pulmão e sai-me pela guela
             À força de tossir bastante enrouquecida,
                                                     E se inda vivo assim é porque a minha vida,
                                                     Amarga como é não posso dispor dela.
  
    Porque a verdade é esta: a vida que se arrasta
    Do nada até à flor, do verme até a pedra,
    É sempre a mesma vida incómoda, nefasta…
    Que a dor do Universo em toda a parte medra.

           

 Assim, talvez um dia eu, que prefiro a Lua
 A tudo quanto é bom, a tudo quanto é são,
 Me torne por destino em pedra duma rua,
 Que a multidão acalque, a doida multidão.

Talvez eu venha a ser a flor dum cemitério.
E estrela do Azul, a areia do Oceano;
A Vida não tem fim como o destino humano,
E se o Não-ser é tudo, o Nada é um mistério.

E eu que era, noutro tempo, enérgico, robusto,
Quando no meu jardim floriam as roseiras,
Padeço horrivelmente, já respiro a custo,
E a minha tosse lembra a reza das caveiras…

Quem sabe lá! Talvez nas grutas do meu ser
A Morte agora esteja abrindo algum jazigo…
E os vermes por desgraça escutem o que eu digo,
Vivendo dentro de mim sem eu os perceber.

Que negro mal o meu! Estou cada vez mais rouco!
Fogem de mim com asco as virgens d’olhar cálido
E os velhos, quando passo, vendo-me tão pálido
Comentam entre si:- coitado, está por pouco!...

Por isso tenho ódio a quem a quem tiver saúde,
Por isso tenho raiva a quem viver ditoso,
E, odiando toda a gente, eu amo o tuberculoso,
E só estou contente ouvindo um alaúde.

Cada vez que me estudo encontro-me diferente,
Quando olham para mim é certo que estremeço;
E vai daí, pensando bem, sou, como toda a gente,
O contrário, talvez, daquilo que pareço…

Espírito irrequieto, fantasia ardente,
Adoro como POE as doidas criações,
E se não bebo absinto é porque estou doente,
Que eu tenho como ele horror às multidões.

E amando doidamente as formas incompletas
Que às vezes não consigo, enfim, realizar,
Eu sinto-me banal ao pé dos mais poetas,
E achando-me incapaz, deixo de trabalhar.

São filhos do meu tédio e duma dor qualquer
Meus sonhos de nevrose horrivelmente histéricos
Como as larvas ruins dos corpos cadavéricos,
Ou como a aspiração de Charles Beaudelaire.

Apraz-me o simbolismo ingénito das coisas…
E aos lábios da mulher, a desfazer-se em beijos,
Prefiro os lábios maus das negregadas loisas,
Abrindo num ansiar de mórbidos desejos.

E é em vão que medito e é em vão que sonho!
Meu coração morreu, minha alma é quase morta…
Já sinto emurchecer no cancro a flor do Sonho,
E oiço a Morte bater, sinistra, à minha porta.

Estou farto de sofrer, o sofrimento cansa,
E por maior desgraça e por maior tormento,
Chego a julgar que tenho- estúpida lembrança-
Uma alma de poeta e um pouco de talento!

A doença que me mata é moral e física!
De que me serve a mim agora ter esperanças,
Se eu não posso beijar as trémulas crianças,
Porque ao meu lábio aflui o tóxico da tísica?

E morro, morro assim tão novo! Ainda não há um mês,
Perguntei ao doutor:- Então?...- Hei de curá-lo…
Porém já não me importo, é bom morrer, deixá-lo!
Que morrer… é dormir… dormir… sonhar talvez…

Por isso irei sonhar debaixo dum cipreste
Alheio à sedução dos ideais perversos…
O poeta nunca morre embora seja agreste
A sua aspiração e tristes os seus versos!

  José Duro

NOTA:- Colocando aqui os seus versos (de um período já muito mau da sua vida) presto-lhe deste modo a minha singela homenagem.
Quinta da Piedade, 28 de dezembro de 2014
JGRBranquinho



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