“OS MARROQUINOS”
Ainda menino e moço, vivendo no meio campestre, fui habituado,
naturalmente- portanto sem qualquer constrangimento- a uma vida muito
diferente da dos meninos da cidade.
Esses chamavam-nos "marroquinos" com sentido depreciativo, só
porque não vivíamos na cidade- a cidade de Portalegre, que ficava a uns
escassos cinco quilómetros do meu sítio- o Monte Carvalho- freguesia da Ribeira
de Nisa.
Alguns de nós afinávamos com esse apodo, o que gerava, por vezes, brigas ou
respostas que entendíamos dever dar, dando azo a desinteligências de certo modo
graves, entre nós e eles.
Isto acentuava-se quando íamos à cidade, especialmente quando frequentávamos as
escolas e ali permanecíamos mais tempo debaixo dos impropérios desagradáveis
com que éramos "mimados".
Julgávam-nos inferiores e riam-se de nós, o que dava origem a rivalidades
tremendas, tendo alguns de nós- os mais fracos- chegado a desistir de
frequentar as aulas, muito por culpa dos alunos mais velhos, já que coabitavam
na mesma escola, alunos do l.º ano (com cerca de 10 anos) com os do 5.º, com a
agravante de alguns serem repetentes há vários anos e nós os confundirmos com
os professores! Davam-nos ordens e nós tínhamos que cumpri-las à viva força,
sempre sob ameaça. Ai de nós se não obedecêssemos!
Os professores e os empregados- ao tempo- não atendiam as nossas queixas e
tiveram alguns pais que ir levar e buscar os filhos para obviar a que mais
problemas acontecessem.
Foram tempos difíceis para as crianças, até porque eles- os tais
"meninos"- já aplicavam as famosas praxes que iam desde o corte de
cabelo, molhadela na torneira do pátio, a moedinha para se poder "pintar o
pau da bandeira da Escola", até aos roubos de material escolar, para além
da violência física!
Evidentemente que isto era mais no princípio, embora durante o ano também se
tivesse que suportar a violência desses rapazolas "simpáticos"que não
nos deixavam "por o pé em ramo verde".
Claro que o rendimento escolar disso se ressentia pelo constante receio de que
andávamos possuídos.
Com o tempo, as coisas lá se iam compondo e posso afirmar que "assente a
poeira" dos primeiros meses, os que resistiam, já conseguindo dar luta aos
tais diabretes, apresentavam, de modo geral, melhor aproveitamento escolar que
eles- incorrigíveis cábulas.
Um aluno que vem do campo, tem uma cultura de vida muito superior,
contactando mais diretamente com a Natureza no amanho e cultivo das terras e
no cuidar dos animais; podendo, inclusive, olhar à noite o céu e as estrelas
com maior facilidade em sítios onde não havendo ainda luz elétrica, conhecia
coisas que os da cidade não conheciam nem sabiam distinguir, confundindo, até,
um cavalo com um macho ou com um burro, uma ovelha com uma cabra!
Isto para além de mil e uma tarefas do dia- a- dia que são importantes na nossa
vida e que muito naturalmente, um rapaz da cidade não tinha oportunidade de
conhecer tão facilmente como um qualquer de nós a viver no campo, aprendendo
com os agricultores e outros artífices que ali trabalhavam em oficinas denominadas lojas, como era o caso dos canastreiros e carpinteiros.
Com essa experiência adquirida e os estudos, foram os " marroquinos",
comprovadamente, que obtiveram melhores resultados na Escola Industrial e
igualmente no Liceu- de um modo geral- quando, à partida, se supunha que
acontecesse o contrário, tal o fraco conceito em que éramos tidos. Vínhamos da "parvalheira!
Não vou dizer que não houvesse entre os outros, também bons alunos, mas nós
tínhamos um maior sentido das responsabilidades e dávamos melhores
provas, até no comportamento social/escolar. Por mim- afianço-vos- nunca dei
origem a uma expulsão, fosse de que aula fosse! Cumpria, apenas, o meu dever.
Estava ali para aprender.
Vantagens de uma origem aparentemente mais modesta, humilde, mas muito mais
rica, de que hoje me orgulho por ter sabido cumprir os meus deveres como era devido e, obviamente, para meu próprio bem.
Infelizmente- quanto às praxes- até quando continuarão com os seus excessos?!
JGRBranquinho
Muito bem! Gostei. Ainda hoje existem e ainda mais refinados os/as mariolas que fazem do "bullying" a melhor arma para ultrapassarem as suas próprias frustrações, alvejando os aparentemente mais fracos e levando muitos ao completo desespero e até, conheço alguns casos concretos, à recusa da escola. Um dia salvei um de ser metido de cabeça dentro de um caixote do lixo. O irmão, que é hoje meu aluno, falou-me desse episódio triste.
ResponderEliminarObrigado por teres lido, Dulce!
ResponderEliminarGostei que o tivesses feito, por também me interessar saber a tua opinião.
As praxes académicas cada vez assumem maior gravidade, infelizmente. Alguém há de ter que por termo as estas barbaridades. Confiemos. Mas quanto mais depressa, melhor
Um beijo.